É publicada, hoje, pela Condé Nast, a mesma empresa americana
responsável por títulos consagrados como a New Yorker, Vanity Fair e
Glamour. É lida, imagino, por nerds e geeks, ou seja, por aqueles
intelectuais que gostam ou gostavam de ficção científica e hoje mandam
no mundo ou pelo menos têm uma "estação de trabalho" (mesa) numa das
filiais da Microsoft ou da Sun Systems. Embora traga anúncios
maravilhosos das maiores empresas de tecnologia do planeta, IBM,
Hitachi, AOL, Nokia e Microsoft, entre muitas outras, adota uma linha
claramente libertária em relação à tecnologia. Abaixo do próprio
logotipo da revista se lê a frase "compartilhe a riqueza" (share the
wealth).
Entre as reportagens, notas e frases da edição de novembro da
Wired, há coisas do tipo "Como o videogame Pong inventou a internet",
"Não me odeie por ser digital", "A modificação genética da cocaína" e
uma grande seção especial dedicada ao futuro da música - e da própria
cultura - no mundo digital.
Nela se lê que o futuro será definido pelo sampling, ou seja,
pela recombinação criativa de obras que já existem. Até aí nada de
muito novo, é o que fazem os DJs hoje em dia e o que faziam modernistas
como Picasso ou John Coltrane, entre outros.
A novidade está no CD que vem grátis com a revista (numa
embalagem fantástica). Ele traz 16 músicas de artistas conhecidos, 13
dos quais podem ser utilizadas para que se façam novas versões
musicais, samples-comerciais mesmo. Ou seja, você pode pegar esse CD da
Wired, roubar dele o que quiser e lançar suas próprias músicas no
mercado, desde que sejam "altamente transformacionais". Quem estiver
interessado deve procurar os detalhes legais no site
creativecommons.org/wired (há uma série de restrições). Entre os
artistas que cederam obras para o projeto estão Le Tigre, Peter
Westerberg, David Byrne e o nosso ministro da Cultura, Gilberto Gil,
que entra com a (ótima) Olodum.
A maior surpresa, no entanto, levei ao ler as reportagens que
acompanham o CD. Uma delas, de Julian Dibbell, é dedicada
exclusivamente ao Brasil. Segundo o jornalista, nosso país é um dos
líderes do movimento para liberar obras de arte e software das
restrições de direitos autorais, tornando a cultura digital mais
acessível. A política de tecnologia do governo privilegia software
grátis através do Linux, o Brasil tem o primeiro sistema de caixas
eletrônicas de banco com código-fonte aberto (open source) e está na
vanguarda dos movimentos que visam a liberalização dos conceitos de
propriedade intelectual no mundo.
Por que o Brasil?, pergunta Dibbell a certa altura da sua
reportagem. A resposta passa, acredite, pelo bispo Sardinha, pelo
conceito de antropofagia do modernista Oswald de Andrade, pelo
tropicalismo do Caetano e Gil e pela heróica batalha do então ministro
da Saúde José Serra contra os fabricantes de remédios anti-HIV na
década de 1990. A ordem do dia no planeta é tropicalizar, segundo o
jornalista especializado em economias virtuais. E explica, em inglês:
"To tropicalize. Verb form of the noun." Ou seja: Tropicalizar. Forma
verbal do substantivo.
No centro dessa discussão toda está a questão de direitos
autorais (copyright). Ou seja, como permitir que as pessoas
compartilhem livremente a cultura digital sem onerar os artistas e
engenheiros que escreveram as obras originais? A esperança, escreve
Dibbell, é que seja possível criar um sistema alternativo de
compensação - semelhante ao que existe hoje no rádio -, que quebre o
impasse atual entre a indústria e os fãs de uma vez por todas e
possibilite que os artistas sejam pagos e que os arquivos digitais
possam ser trocados livremente. "Vai ser uma batalha", conclui o
jornalista na Wired, "mas até agora só o Brasil demonstrou qualquer
coisa parecida com a vontade política necessária para tamanha façanha."
E lá vai o nosso país, mais uma vez, de volta para o futuro.
O Estado de S. Paulo - Editorias - //22/11/2004
MATTHEW SHIRTS
http://www.softwarelivre.org/news/3335